27 de fevereiro de 2012

Despedida de um grande amor, senão o maior.

luta a lembrança em meio ao cheiro e cor de luto
insignificante, como a confiança do respirar convalescente
singela e, como sempre, profunda
brada, dispara, cala... e consumida se desencontra
e enquanto o tempo corta a pele, esvai o sangue dessa palavra
lentamente, cegamente, tardiamente
acorda, recorda, limpa... mesmo que mais sangre o escrever.

palavras pisam o travesseiro
onde me afoga esse segundo
ressuscitado no torpor das roupas arrancadas
quase afasta as tuas digitais dos meus poros
umedecidos pelos beijos promíscuos dessas lagrimas
esculpidas na pele... penetram o que as repelem, e curam.

traçados, premeditadamente rabisquei teu outro nome
encravado em negro no mesmo lugar, na pele.

ausente, violenta a mentira que degusta
mordida pelo sono, inverte o sonho que outrora me condenava
ordena o irreversível, torna-se humano, demasiado.

tece um segredo para não excitar a verdade desnuda
e, só então, encostada no silêncio, deslealmente o despe.

parte aquela palavra inteira
e eis que, partida, desabotoa a intimidade dessa lembrança
recheando seus lábios, que ainda assim os calam:
delitos deitados nas margens dos momentos que nos abraçam
onde velados enfim se encontram a eternidade e...
o fim.

Lisbela, parte final.

13 de fevereiro de 2012

Quem tem medo de Clarice Lispector?

Sobre minha escrivaninha, o maço de cigarros me adverte que fumar faz mal à saúde. Involuntariamente sorrio. Do lado do cigarro, há algo ainda mais prejudicial sem que haja nele qualquer advertência: um livro de Clarice Lispector. Que diabos de parâmetros são esses de acordo com os quais a nicotina é mais venonosa do que a visão lispectoriana do mundo? Ou a saúde pública não goza de capacidade de discernimento, ou não leu Clarice... Ela chegou às minhas mãos há muito tempo e sempre me assustou: sua densidade, seus mergulhos existenciais são potencialmente destrutivos e perturbadores. Mas hoje ela se reaproximou sorreteira, ressuscitada por um amigo-em-quem-me-vejo-como-um-espelho. Ah, amigo, foi maldade! Falar de Clarice reacendeu em mim um desejo meio-totalmente masoquista de me deixar arrastar pelo seu turbilhão discursivo. Estou apavorada: essa mulher era caso perdido ou perdida estou eu?... abro à revelia e em pânico uma página de seu livro."Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o risco sagrado do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade." Como posso ler isso e ir tomar sorvete como toda a gente, fingindo que não sei que isso foi escrito, com absoluta certeza, para mim. Eu tenho medo, sim, de Clarice Lispector: ela é intimidadora, como certos amigos que tenho... amigos que me fazem pegar do canto direito da terceira prateleira da minha estante o livro que é causador da minha agonia. Amigos que me fazem lembrar que viver é muito perigoso - embora o autor da frase seja G. Rosa. O que irá me sucumbir afinal: as milhares de substâncias químicas do meu cigarro ou a perigosa perspectiva da escritora ucraniana?... Acendo um cigarro, lembro de Augusto dos Anjos, outra ameaça, por causa da rima: "O beijo, amigo, é a véspera do escarro". Fumo calmamente e sem culpa, enquanto fecho o livro e o ponho fora de alcance. O estrago está feito. As feridas, expostas. Tenho contade de dizer ao meu amigo que isso não se faz... é caso de denúncia criminal. Mas já que ele o fez, o mínimo que pode me oferecer é colo... e cigarros.





[Por minha melhor e eterna professora: Tereza Cavalcanti]

11 de fevereiro de 2012

Cicatrizes

A você.


Era fascinada por cicatrizes. Desde pequena. Na pele dos outros, provocavam curiosidade – o que foi isso? – e Ela passava a mão, sem repulsa alguma, apenas fascínio. Na própria pele, as feridas eram pacientemente olhadas e, tornadas cicatrizes, admiradas. Não, não era masoquista. Jamais pensou em ferir a si mesma para que lhe nascessem aquelas marcas. Mas as quedas naturais e inevitáveis da infância lhe deixaram algumas, que ela nunca tentou esconder. Crescida, descobriu que o que lhe atraía nelas não era a forma ou a estética – era a simbologia. Cicatrizes representavam cura, superação - indelevelmente impressa na pele - da ferida e da dor. Cicatrizes eram um troféu, algo que só os que sofreram e transcenderam o sofrimento podiam ostentar, evidências de vida arriscada e plena. Crescida ainda mais, descobriu as cicatrizes invisíveis – as da alma, do coração. Sensível, Ela encontrou uma maneira de percebê-las nos outros, pelo olhar, e contemplava admirada as almas em que as antigas feridas – outrora tão abertas e insuportavelmente dolorosas – eram apenas cicatrizes... Sentia por essas almas uma forte comoção, mais que isso, uma devoção, como se elas lhe fossem superiores. Achava extraordinário tudo isso.
Até que seu coração foi ferido. Sangrou como os jovens corações feridos sangram: descompassada e demasiadamente. A sensação era desagradável e parecia eterna. Então lembrou-se das cicatrizes. Lembrou-se de que elas só existiam com dor prévia, não se conquistava uma impunemente. Rastreou o seu corpo em busca daquelas marcas, evidências da sua capacidade de superar, de recomeçar. Então sorriu, certa de que seu coração pararia de sangrar, cicatrizaria: era apenas uma questão de tempo, que Ela, jovem, tinha abundantemente. Passado esse tempo, Ela enfim entraria naquela categoria superior e, devota de si mesma, exibiria aquele troféu invisível àqueles que não enxergam a alma. Apenas a certeza disso já era suficiente para estancar o sangue que há pouco ainda jorrava. Paciente e extasiada, esperava por ela...




[Por minha melhor e eterna professora: Tereza Cavalcanti]

2 de fevereiro de 2012

Memória de minhas putas tristes

“Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era prêmio merecidos de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligencia; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cólera reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado de alma e sim um signo do zodíaco". (pg. 74.)